“Um aspecto importante na análise marxista (particularmente aquela inspirada nos textos dos Grundrisse)
da individualidade do ser humano é a referência explícita e literal
que Marx faz à famosa definição aristotélica de homem (presente tanto
na Política como na Ética a Nicômaco) como zoon politikon (animal político). Para Aristóteles ‘o homem é por natureza um animal político’, isto é, um ser vivo (zoon) que, por sua natureza (physei), é feito para a vida da cidade (bios politikós, derivado de pólis,
a comunidade política). No contexto da filosofia de Aristóteles, essa
definição é plausível e revela a intenção teleológica do filósofo na
caracterização do sentido último da vida do homem: o viver na pólis, onde o homem se realiza como cidadão (politai)
manifestando, no termo de um processo de constituição de sua essência,
a sua natureza.” (Prof. Dr. César Augusto Ramos - Prof. Filosofia
Política – Depto de Filosofia da UFPR)
Aristóteles definiu os seres humanos como sendo
“animais políticos”. A base para sua colocação, tantas vezes
mal-interpretada, partiu da premissa de que somos seres sociais e que,
por conta das particularidades dos espaços nos quais desenvolvemos
nossas vidas, temos maior propensão e melhor adaptabilidade ao espaço
urbano, a cidade ou, de forma mais adequada ao contexto de vida daquele
pensador grego, a “pólis”.
O termo “pólis” tem estreita ligação com a vida dos
helenos (gregos) da Antiguidade Clássica, pois define as bases
territoriais de vida social e política em que se assentavam as
comunidades unidas por fatores de proximidade entre as pessoas, como
origens familiares, tribais, étnicas, linguísticas e culturais.
Surgidos a partir da migração de povos provenientes
da Europa Oriental, Ásia e da Ilha de Creta (Civilização Micênica), como
os jônios, dórios, eólios e os micênicos (ou cretenses), os primeiros
povoados gregos, regidos pelos “pater” e, portanto, baseados na célula
mater das sociedades, as famílias, deram origem as cidades gregas, as
pólis.
A compreensão de Aristóteles, grego de gerações
posteriores a conformação sócio-política e cultural que deu origem a
cidades esplendorosas como Atenas e Esparta, portanto considera que,
enquanto degrau evolutivo da humanidade, a pólis (cidade) configura o
espaço máximo de expressão e realização humana, mas que tudo isso
depende, porém, da forma como as pessoas irão conduzir esta existência
coletiva.
A utilização da expressão “animal político” leva em
consideração tanto o fator geográfico, físico e as questões relativas à
delimitação de fronteiras – que por sua vez estipulam não apenas os
espaços por onde podem e devem transitar os membros de uma determinada
comunidade, como também os elementos e características que os definem
social e culturalmente – como também pede e define como imprescindível a
criação de regras, leis, bases de convivência e elementos de
governabilidade.
E é, justamente, nesta migração para bases
elementares para a coexistência pacífica entre os membros de uma mesma
comunidade que se define aquilo que atualmente identificamos e intuímos
ser “política”.
Os gregos, em especial os atenienses, discutiam as
questões de interesse público, obviamente também mescladas a elementos
mobilizadores de base particular, em praça pública, na chamada “ágora”.
Mas a experiência da democracia direta, mesmo porque aplicada a uma
única pólis e não a um conglomerado delas, funcionava porque as
assembleias tinham que ser convencidas pelos articuladores das ideias e
propostas ali mesmo, ou seja, in loco.
Convencer os cidadãos e não os representantes destes
era muito mais complexo do que aquilo que hoje vemos nos corredores do
Senado ou da Câmara Federal, no qual reinam os conchavos e imperam os
lobistas com seu alto poder de sedução pautado em benefícios de alto
valor...
Podem alegar os detratores da democracia vivida em
Atenas que esta experiência não constitui uma versão exponencial de tal
regime político porque as restrições à participação de expressivos
contingentes sociais (como as mulheres, os menores de idade, os
estrangeiros e os escravos) lhe destitui de tal representatividade que
permita considerar tal experiência como sendo realmente expressão de
governo (cratos) do povo (demo).
Mas o que, por outro lado, levam historiadores de
diferentes origens e matizes ideológicos a considerarem a experiência
dos atenienses como sendo legítima é o estabelecimento das assembleias
públicas, dos fóruns e tribunais que julgavam as pendências, das bases
de governo e responsabilização direta pela administração daquilo que
era comum, coletivo e de usufruto de todos.
Os romanos, herdeiros do rico acervo cultural grego,
composto pela política e por tantas outras matrizes genéticas que se
espalharam pelos quatro cantos do mundo (como a filosofia, as artes
plásticas, o teatro, a literatura...), deram continuidade e reforçaram
as bases operacionais que confirmam a tese do “animal político” de
Aristóteles, com o refinamento e aperfeiçoamento das bases jurídicas
que sustentam o espaço político por excelência, as cidades...
Em ambos os casos, é preciso ressaltar que tanto
gregos como romanos determinaram para a eternidade como fundamento
social, contestado com veemência a partir do século XVIII, com os
movimentos sociais de contestação ao capitalismo, a propriedade privada
e, com ela, a diferença social. O passar dos séculos viu migrar o
poder das mãos de quem tinha terras para quem detinha o capital ou,
mais recentemente, o conhecimento...
Além disso, a Antiguidade Clássica herdou de seus
antecessores, das sociedades hídricas ou baseadas no modo de produção
asiático, como os fenícios, egípcios e os povos da Mesopotâmia a
proeminência dos laços de sangue, da troca de favores e ainda da
necessidade de estar bem-relacionado socialmente para conseguir
progredir...
Ou seja, de certa forma, pode-se dizer que,
guardadas as devidas proporções, somos herdeiros de séculos e séculos de
hábitos e ações que constituem aquilo que definimos como “política”. E
isto serve tanto para aquilo que podemos considerar como de interesse
geral e, portanto, o que pode ser considerado benéfico, pois
teoricamente coloca em pauta o que beneficia não apenas uma pessoa ou um
pequeno grupo e, sim, a maioria do corpo social, quanto àquilo que
fere os interesses coletivos...
E é nesta seara que migramos da política para a
politicagem. Que, também nos conformes da teoria, deveria ter sido
brecada ou ao menos estancada a partir da consolidação do sistema de
poder tripartido, sugerido pelos iluministas, com destaque para a
obra de Montesquieu, “O Espírito das Leis”. De acordo com o filósofo
francês, ao estabelecermos a divisão de poderes com o surgimento do
Executivo, do Legislativo e do Judiciário, estaríamos tornando menos
complexa a administração, delegando poderes a representantes que iriam
defender os interesses da coletividade e, ao mesmo tempo, criando meios
de fiscalização de um para outro poder que tornariam menos propícia a
corrupção, o clientelismo, a prevalência dos lobbies...
E não é que, a República Democrática cruzou o
Atlântico e mesmo com atraso chegou ao Brasil, a partir de 1889.
Pensou-se por estas bandas que a superação do Império nos levaria a uma
condição de maior prosperidade, liberdade, igualdade e fraternidade...
No entanto, logo de cara estabeleceu-se o princípio do benefício em
favor do Café com Leite, com a República dos Coronéis, a política do “é
dando que se recebe”, os currais eleitorais, o voto fantasma...
E o que pensar de hoje em dia, depois de idas e
vindas daquilo que esperávamos ser a democracia brasileira, com golpes
de estado (como na década de 1930, com Getúlio Vargas, ou em 1964, com o
estabelecimento da longa noite da ditadura militar) e até mesmo a
abertura de um processo de impeachment logo quando o estado democrático
de direito parecia estar se restabelecendo no país, no início da
década de 1990, quando cassaram o mandato do “caçador de marajás”, o
candidato collorido?
A leitura atual da expressão cunhada por
Aristóteles, quanto ao homem como “animal político”, no Brasil e em
outras partes do mundo também (com maior ou menor ênfase), nos leva a
crer no predomínio da palavra “animal” que sobrepuja toda a compreensão
anterior trazida a tona quanto ao conjunto da expressão e, em especial,
a análise do termo “político”... Pensando-se, quanto a isto, nos
animais quanto aos seus instintos mais primários, aqueles que se
mostram mais presentes quando estes seres lutam por sua sobrevivência
e, neste ensejo, ignoram qualquer sentido de respeito a vida em grupo,
quanto mais a qualquer aspecto relacionado a civilidade, a princípio
própria apenas aos seres humanos...
Este parece ser o quadro atual das condicionantes
políticas brasileiras, ou seja, em pleno 3º milênio, regredimos a
estágios animalescos que superam qualquer outro vetor, principalmente
os que dizem respeito ao compromisso público que deveria ser assumido
por todo e qualquer representante do povo estabelecido nas tribunas e
bancadas do legislativo, do judiciário ou do executivo..
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